Por Jetsunma Tenzin Palmo
Há muitos anos atrás o Dalai Lama esteve no Vale Lahoul onde eu vivia. Ele estava dando algumas iniciações e palestras. Ele permaneceu lá por uma semana. Depois de uma de suas palestras que durou várias horas, eu perguntei a uma das mulheres Lahouli que estava presente “Você sabe sobre o que o Dalai Lama estava falando?” E ela respondeu, “Bem, eu não entendi muita coisa, mas o que compreendi é que é ótimo termos um bom coração”. Então é basicamente isso. O que mais há para se dizer? Se tivermos um bom coração é ótimo, não é? Mas o que entendemos como um bom coração?
Nossa sociedade está muito preocupada com o crescimento pessoal. Estamos muito preocupados em realizar nosso potencial, mas ao mesmo tempo nos preocupamos em estar em conformidade com a sociedade na qual nascemos. É como um paradoxo, pois por um lado somos encorajados a sermos individualistas e por outro, mesmo numa sociedade alternativa, todos deverão ser alternativos da mesma maneira. Vocês perceberam isso?
A sociedade tradicional estava baseada na família. Quando eu era criança brincávamos com jogos em família. Jogávamos monopólio, baralho ou outros jogos, sempre juntos. Era coisa de família. A mãe ficava em casa: ela cozinhava e cuidava das crianças. Cada um se identificava como parte da estrutura familiar. Aí, além disso, nos identificamos com uma classe em particular, casta ou sociedade e até com uma região em particular, país, raça e assim por diante.
O caso é que em uma sociedade tradicional cada um sabia o que era em relação a tudo em sua volta. Cada qual tinha sua posição definida e dessa posição, sendo superior ou inferior (superior para alguns e inferior para outros) – cada um sabia como agir e o que era esperado dele.Havia também tarefas e responsabilidades que faziam parte de ser um grupo, ou parte da família, ou de uma pequena sociedade onde se vivia. Eu me recordo que mesmo tendo sido criada em Londres, se alguém na vizinhança adoecia, todos os vizinhos ajudavam. Havia um senso de que ser vizinho significava cuidar uns dos outros.
Na época do meu crescimento, este senso de fazer parte de uma rede de interconexões era ainda muito forte. Mas hoje, na medida em que o individualismo torna-se cada vez mais veemente, parece que a sociedade está se tornando cada vez mais alienada. Assim, o senso de ser capaz de comunicar-se com os outros diminui. Não somos mais criados com o sentimento de respeito, dever e responsabilidade, mas sim, com o sentido se assegurar “meus direitos” e cuidar dos “meus interesses”.
Pensamos que assim nos tornaremos capazes de nos expressar, de conseguirmos aquilo que desejamos e de fazer tudo aquilo que nos agrada. A idéia é a de que o individualismo nos tornará plenos, que isso nos ajudará a descobrir quem realmente somos de forma a trazer um sentimento de grande satisfação. Essa é a idéia não é? A de que se agirmos exatamente da forma que desejamos, dissermos exatamente aquilo que queremos dizer e pensarmos sobre o que quisermos, de alguma forma isso nos trará felicidade, satisfação e plenitude, pois estamos conseguindo o que queremos. Então como isso tem dado tão errado?
Podemos observar isso claramente em um lugar como a Austrália: externamente a Austrália parece um paraíso não é?
Quero dizer, para mim, que vim de Nova Deli, fiquem certos de que a Austrália parece ser um paraíso! É tão limpa e tão organizada: o tráfego flui nas pistas certas, não existem vacas perambulando pelas estradas (as vacas estão nos pastos, não nas ruas). Não há pobreza ostensiva, não há leprosos nem mendigos nas ruas. Quando se olha para isso, realmente parece algo saído de um livro de gravuras. Então por que a Austrália possui um dos maiores índices de suicídio do mundo? O que acontece de errado?
Essa é uma pergunta profunda e perturbadora. Eu não sou socióloga nem tampouco psiquiatra, então não vou me aprofundar nisso. Mas por detrás dessa pergunta há essa escuridão porque nossa sociedade, os meios de comunicação e o sistema educacional tentam incentivar as pessoas a pensarem que o que importa é o sucesso, que ser belo e popular, ter rios de dinheiro e lindas roupas trará a todos felicidade eterna. Certamente isso não é verdade. Se assim fosse, vocês não estariam aqui esta noite, uma vez que isso seria o suficiente e nós não precisaríamos buscar nada além.
Atualmente, o Oriente – especialmente países do terceiro mundo – está começando a absorver essa consciência consumista. Estão começando a se ligar nessa ética que diz “mais é melhor” e que a vida sem televisão, sem carro ou roupas da moda ou o que quer que seja é privação. Então para sermos felizes temos que possuir essas coisas. A maioria das pessoas não tem isso, há uma classe média emergente, mas a maioria ainda vive do essencial. Contudo, olhando esses artigos de luxo na televisão eles pensam “se tivéssemos essas coisas seríamos eternamente felizes”. Eles vêem esses programas americanos dublados em Hindi mostrando casas americanas incríveis e imaginam “agora, se tivéssemos uma casa como essa, isso seria o nirvana”. Mas porque não a possuem, isso fica como um brilho distante. Contudo, no Ocidente temos essas casas. Muita gente cresceu em uma casa que tinha tudo isso.
Lembro-me de uma amiga alemã que morou em nosso acampamento Tibetano. Ela estava feliz porque ia comprar um aspirador de pó! Durante semanas ela procurou entre várias ofertas e finalmente comprou um. Ela estava feliz aspirando toda a sua casa. Vocês imaginam alguém tão extasiado com um aspirador de pó?
Mas se não podemos ver essas coisas, existe a forte idéia de que se pudéssemos tê-las, elas proporcionariam permanente alegria. Claro, ela era alemã, e embora muito entusiasmada ela sabia que isso era muito tolo, mas se jamais tivermos essas coisas poderíamos ficar fascinados pelo sentimento de que ali está a resposta… de que se ao menos pudéssemos possuir essas coisas.
Agora no Ocidente, porque possuímos tantos bens materiais – se tivermos o mínimo de inteligência– nos daremos conta de que isso não é a resposta, pois o vazio permanece dentro de nós e não importa com que objetos tentemos preenchê-lo, o sentimento de falta continua dentro de nós. Isso não significa que não devamos ter televisão, carro ou aspirador de pó. O problema não está no objeto ou se temos pouco ou muito. A questão é se acreditamos que essas coisas nos trarão uma satisfação profunda. Assim, para os ocidentais isso é uma vantagem: se pudermos superar o senso de sonhar com coisas materiais, poderemos ter atingido o estágio onde se começa a pensar que deve haver algo mais.
Nos agarramos àquilo que pensamos ser os valores modernos, mas eles são usualmente apenas os valores superficiais que nos foram dados a colheradas pelos meios de comunicação, pelo ambiente onde vivemos e pela sociedade. Daqui há dez ou vinte anos olharemos pata trás e pensaremos: meu Deus eu realmente usei aquilo? Eu realmente pensava aquilo? Porque pensamentos e opiniões, julgamentos e tendências, facilmente tornam-se obsoletos tanto quanto as roupas que usamos.
Na nossa sociedade somos ensinados a pensar em nós. Somos treinados a nos desenvolver de forma a sermos bem sucedidos. Somos ensinados sobre a necessidade de progredirmos na vida – em qualquer esfera– e provar a todo mundo que somos bem sucedidos para que todos nos invejem. Como resultado, nossa sociedade constrói cada vez mais uma cultura de pessoas alienadas. Isso, é claro ajudado pela era do computador com as pessoas se relacionando mais facilmente com ele do que com os membros de sua família. Tipicamente marido e mulher vão para o trabalho e se matam de trabalhar. Voltam para casa e então o que fazem? Trazem comida pronta – ninguém mais cozinha – e desmaiam na frente da televisão. E as crianças voltam para casa, vão para seus quartos assistir seus próprios programas. Todos plugados na internet ou nas suas caixas de e-mail. Onde está a comunicação entre eles?
Então estamos nessa sociedade onde os adolescentes crescem incapazes de se comunicarem. Mesmo quando se encontram eles são frequentemente tragados nas suas próprias diversões. Vemos pessoas nas ruas ouvindo música com seus fones de ouvido ou falando nos seus celulares. Em outras palavras, elas estão andando no seu próprio ritmo. Estão completamente enclausuradas no seu próprio mundo – não no mundo ao seu redor – mas no mundo “martelando” em suas cabeças. Assim nos tornamos cada vez mais alienados e na medida em que ficamos cada vez mais solitários em meio aos outros, mais deprimidos nos tornamos. Isso é uma ironia.
Por que os ocidentais com freqüência experimentam alienação, esse desgosto profundo consigo mesmo e o sentimento de estarem desconectados dos outros? A causa parece ser um profundo sentimento de alienação que vem de dentro de si mesmos, não só de fora. As pessoas não estão felizes, nem em paz consigo mesmas. Elas não se gostam. Então se não gostamos de nós mesmos, sempre iremos ter problemas com os outros.
Há 2500 anos atrás quando Budda falou sobre a prática da bondade amorosa, ele disse que haviam duas formas de irradiarmos amor e generosidade para todos os seres. Primeiro poderíamos enviar pensamentos de amor em todas as direções – Norte, Sul, Leste, Oeste, para cima e para baixo, para todo canto. Nós apenas a irradiamos para todos os seres do mundo. Ou poderíamos começar com as pessoas de quem gostamos – família, sócios, nossos filhos– e então extender isso para quem nos é indiferente, depois para pessoas de quem não gostamos e finalmente para todos os seres em todos os lugares.
Contudo, antes de fazermos isso, ele nos aconselhou a começarmos a irradiar para nós mesmos. Para começarmos a nos dizer “que eu esteja bem e feliz. Que eu esteja em paz e tranquila”. Vocês entendem? Se não sentirmos primeiro bondade por nós mesmos, como poderemos ser generosos com os outros? Devemos sentir amor e compaixão por todos os seres sencientes: humanos, animais, insetos, pássaros –seres que vemos e que não vemos, seres dos reinos elevados e nos inferiores, seres por todo o universo. Todos os seres sencientes são objetos de nosso amor e compaixão. Como então omitirmos o ser que se encontra bem aqui? Este ser que supostamente está sentindo este amor sem fim? É como irradiarmos tamanha luz encontrando-nos na escuridão. Isso não está certo – primeiro estendemos nossa bondade para aquele ser que também precisa dela nesse momento: nós mesmos. Isso também diz respeito a desenvolver um bom coração.
Ironicamente em nossa sociedade é tradicionalmente considerado necessário que pensemos em todas as coisas ruins que fizemos e que sintamos arrependimento e culpa.Porque somos
pecadores, deveríamos nos sentir mal. A baixa auto estima é algo positivo porque somos apenas vermes sem importância, se não formos salvos por alguém.
Essa, porém, não é a visão budista. A visão budista diz que desde o início somos completamente puros e completamente perfeitos. Nossa mente original é como o céu – é vasta, sem centro e sem limites. A mente é infinitamente vasta. Não existe “eu” e não existe “meu”. Isso é o que nos interconecta com todos os seres – essa é nossa verdadeira natureza. Infelizmente, no momento nossa natureza genuína está um pouco obscurecida por nuvens e nós nos identificamos com elas. Não estamos nos identificando com o céu profundo, azul e eterno. E pelo fato de nos identificarmos com as nuvens, temos uma idéia limitada de quem somos e de quem os outros são realmente. Se desde o início partirmos do ponto de vista de que sempre fomos completamente perfeitos mas que as coisas tornaram-se confusas e obscureceram nossa verdadeira natureza, não haverá dúvidas sobre sermos ou não indignos. O potencial existe se você for capaz de vê-lo. Cada um de nós o possui: o potencial de Buda, o potencial para a iluminação. Então, onde fica a questão do mundo sem sentido? Uma vez que compreendemos que nosso potencial interno está lá como a base verdadeira e solo de nosso ser, a questão de ter bom coração faz sentido. Porque o que fazemos reflete nossa natureza essencial, seja através da bondade, através da compaixão ou da compreensão. Não estamos tentando desenvolver algo que não temos.
Mudando de metáfora, seria como retornarmos ao manancial puro. Temos dentro de nós um manancial de amor permanente, de sabedoria, compaixão e compreensão que são nossa verdadeira natureza. Sempre existiu, mas foi bloqueada e então nos sentimos interiormente áridos. Olhamos e só encontramos terra seca. Tudo o que vemos é uma imensa pilha de lixo. Então pensamos, “sou apenas uma pilha de lixo. Sou apenas entulho!” Essa é uma terrível falsa identificação. Nos identificamos com essa pilha de entulho e não com aquilo que está sob ela. Sob todo aquele entulho – e não importa se é uma enorme montanha de lixo – a fonte estará sempre lá. Não poderá jamais, jamais, secar. Deveremos descobrir o manancial e ele jorrará como uma fonte. Assim, é muito importante sabermos que, desde o início, temos uma natureza essencial boa, que talvez esteja um pouco encoberta, mas que estará sempre lá.
Agora, certamente há várias formas de começarmos a remover esse lixo. As seis paramitas ou seis perfeições são o caminho que Buddha traçou para a obtenção da iluminação. Elas englobam não só coisas exóticas como meditação e sabedoria, mas começam com o básico como generosidade, paciência e tolerância, conduta ética baseada na inofensividade e no entusiasmo para transformarmos nossas vidas. Todas essas qualidades são muito importantes para nossa transformação interna, pois não poderemos alterar o mundo exterior até que nos modifiquemos. O mundo exterior é o reflexo das mentes dos habitantes na sociedade. Temos a sociedade que merecemos. Nossa sociedade é apenas o somatório das mentes de seus habitantes. Não podemos culpar apenas os políticos e os empresários. Quem delegou poder a eles? Quem os elegeu? Quem compra seus produtos? Se todo mundo amanhã se recusasse a comprar esses produtos a economia entraria em colapso. Então eles teriam que pensar em outra coisa. Mas nós os compramos e o negócio prospera. Nossa sociedade somos nós. Até que transformemos nossas mentes a sociedade não mudará muito. Temos responsabilidade, pois a sociedade não é apenas um grande conglomerado lá fora. Sociedade significa a família, muitas e muitas famílias, muitos e muitos relacionamentos, empresas e lojas. Isso é o que é sociedade. Se alguém sabe como transformar sua própria mente, isso irá mudar a dinâmica da sua relação com a família, com seu lugar de trabalho, com as pessoas que encontrar ao longo do dia. Cada um de nós é responsável por sua transformação interior.
Então começaremos aos poucos. Quando falamos sobre benevolência, há meditações específicas para desenvolvermos essa qualidade. Nas diferentes tradições a prática é um pouco distinta. Mas se não estivermos atentos, a meditação torna-se muito abstrata. Sentamos irradiando benevolência em todas as direções para seres de todo lugar. Estamos sentados lá e todo o universo está repleto de benevolência, então nosso filho chega e diz “Ei! Quero ver televisão “ e nós respondemos “vá embora!! Não perturbe! Estou meditando
na benevolência!”
Benevolência começa onde estamos. É óbvio, primeiro começa conosco. Temos que chegar a um acordo conosco e então chegaremos a um acordo com aqueles que nos cercam. Se não conseguirmos ter benevolência e compreensão conosco, significa que temos baixa auto-estima e isso não é bom espiritualmente. Alguns pensam que porque o Budismo é contra a auto-apreciação, se nos sentimos confortáveis conosco significa que somos pessoas más. E que isso é apenas o ego. Mas isso é um grande equívoco.
Shantideva, filósofo do século VII, ressalta no seu Bodhicharyavatara que existe uma grande diferença entre orgulho e arrogância – aquela auto-apreciação de “eu” e “meu” e o sentimento de “eu sou maravilhoso”– e auto-confiança que é aquele sentimento de amizade e conforto consigo mesmo e que conduz à confiança de seguir em frente. No ocidente frequentemente nós nos “nivelamos por baixo” porque não acreditamos em nós mesmos. A primeira vez que encontrei Sua Santidade o16º Karmapa, em Calcutá em 1965, nos primeiros 10 minutos de conversa ele me disse “seu problema é que você não tem confiança em você. Você não acredita em si mesma. Se você não acreditar em você, quem o fará?” Isso é bem verdadeiro.
Temos que ser amigáveis e bondosos conosco. Se temos tendência de concentrarmos nas nossas falhas – claro, todo mundo as tem – também devemos reconhecer e encorajar o que há de bom em nós. Porque se ignorarmos isso, murcharemos como uma planta murcha longe da luz do sol. Podemos considerar: “bem, sou uma pessoa irada, mas por outro lado sou muito generosa”. Agora, se dissermos apenas: “sou uma pessoa irada” ou “sou irada e ciumenta”, apenas isso, pensaremos então sempre em tudo de ruim que somos. Mas até a pior pessoa tem qualidades e boas coisas que precisam ser reconhecidas e encorajadas.
Buddha disse existirem quatro poderes. O primeiro de todos, o poder de nos livrarmos das qualidades negativas que surgirem e de evitar que outras apareçam no futuro. Segundo, de reconhecermos as boas qualidades que possuímos e encorajarmos outras a surgirem. Devemos reconhecer o que é bom e o que é negativo em nós. Isso vale também para os outros – até aqueles de quem não gostamos possuem boas qualidades.
Todo mundo busca a felicidade. Podemos definir felicidade de diferentes formas. Todos temos idéias próprias sobre onde a felicidade está e alguns têm idéias muito peculiares sobre o que é felicidade – mas, apesar disso, queremos ter felicidade e sentimento de plenitude. Poucas pessoas acordam pela manhã e pensam: como posso me sentir miserável e tornar esse dia o mais miserável possível para os outros? A maioria se tivesse que escolher, iria preferir ser feliz. Assim, quando encontrarmos alguém, devemos nos lembrar: “esta pessoa quer ser feliz”. Basicamente é o que todos querem. Quaisquer que sejam suas idéias equivocadas sobre onde está a felicidade, eles só querem ser felizes. A maioria das pessoas apreciaria mais um sorriso do que um olhar com expressão de desagrado , a maioria não quer ser tratada com rudeza e aprecia a polidez.
Então ao longo do dia, com cada pessoa que nos encontrarmos, nosso sócio, nossos pais, filhos, irmãos ou colegas de trabalho, estranhos que encontramos na loja ou qualquer passante – pensemos “todos eles querem ser felizes” e “como posso nesse momento dar algum prazer e alegria às suas vidas? A cada um que encontramos podemos enviar nossa boa vontade, com ou sem palavras, “que você esteja bem e feliz”. Não importa se gostamos ou não daquela pessoa, se é bonita ou feia, nova ou velha. De todo nosso coração: “que você esteja bem e feliz”.
Um Bodhisattiva toma para si o sofrimento do mundo, mas Bodhisattivas estão sempre sorrindo. Isso porque sua compaixão está ligada à compreensão. É muito importante reconhecer que não importa o quão prósperos e bem sucedidos alguns de nós possam parecer externamente, devemos ser seres muito sensíveis intimamente. Sob a máscara que todos usam, há algo muito sensível e delicado, a dor, insegurança e o medo estão lá. E nós sentimos por isso, grande bondade e compaixão.
A genuína benevolência baseia-se na compreensão da situação como realmente é, ela não é sentimental. Também não se deixa levar por uma espécie de euforia de fingir amor, e negar o sofrimento ao afirmar que tudo é alegria e contentamento. Não é assim. A verdadeira benevolência está aberta para ouvir o sofrimento do mundo, mas usando a compreensão. É um paradoxo que, quanto mais centrados ficamos no nosso sofrer, mais sofremos e quanto mais nos preocupamos com o sofrimento alheio, mais cresce em nós um sentimento profundo de plenitude e contentamento.Obviamente isso não significa que nos alegramos com o sofrimento dos outros e sim que nos esquecemos de nós mesmos ao pensarmos nas outras pessoas.
Doentes mentais estão sempre obcecados com eles mesmos. Eles pensam e falam de si mesmos o tempo todo. Se alguém tenta introduzir um assunto mais geral, eles retornam a si mesmos porque é só o que lhes interessa. Estão obcecados consigo mesmos, seu sofrimento, sua vida, suas memórias. Estão completamente trancados em si mesmos. Eles sofrem. Pessoas completamente sadias e interiormente equilibradas pensam nos outros. Elas cuidam de si, mas sua preocupação principal é a felicidade e o bem estar dos outros. E ao pensarem na felicidade e no bem estar dos outros e não primeiramente em sua felicidade e bem estar, eles sentem-se bem e felizes!
Assim, nossa sociedade erra ao acreditar que a felicidade depende apenas da satisfação de nossos desejos e vontades. É por essa razão que ela é tão sofredora. Somos uma sociedade de pessoas obcecadas em obter nossa própria felicidade. Por isso, nos desligamos do sentimento de interconexão com os outros e ficamos desligados da realidade, pois na realidade todos nos interconectamos.
Enquanto tivermos o coração fechado, só conseguiremos pensar em nós mesmos, nem que seja para constatarmos que somos horríveis, pouco inteligentes e sem valor e que sempre seremos fracassados – é um coração fechado. E isso trará a nós e aos outros, muita dor! Temos a mente que está apenas focada na nossa gratificação pessoal –“aquilo que me dá prazer também é bom para o resto do mundo só porque me compraz. É isso que me importa e o resto que se dane. Eles que façam a parte deles. Eu vou fazer a minha” – essa também é uma mente sofredora. Não é uma mente feliz. Pode ser frenética e tornar-se algumas vezes eufórica, especialmente quando encharcada de substâncias químicas, contudo, não é feliz, centrada, satisfeita. Somente quando aprendermos a abrir nosso coração com sinceridade, visando o bem estar dos outros, é que iremos descobrir que esse nosso espaço interior, esse sentimento de falta e de vazio podem ser preenchidos.
Então começamos a partir de onde estamos e de quem somos. Não é bom querer ser outra pessoa; não é bom fantasiar sobre como seria se fossemos de uma maneira ou se não fossemos de outra e assim por diante. Temos que começar aqui e agora, com quem somos e onde estamos, na situação em que nos encontramos no momento. Temos de lidar com isso – com quem vivemos, com quem trabalhamos e com as pessoas que encontramos. Esse é o desafio. Às vezes evitamos as circunstâncias atuais, achando que com o passar dos anos vamos com certeza encontrar a situação ideal em algum lugar.
Mas não haverá hora e lugar ideal porque levamos conosco para todos os lugares, a mesma mente. O problema não esta lá fora, mas dentro de nós. O que precisamos é cultivar essa transformação interna. Uma vez que desenvolvermos uma mudança interior tudo será sempre igual não importa onde estejamos; podemos administrar o que vier.
O que significa amar? No Ocidente confundimos o sentido do amor; atiramos essa palavra de um lado para o outro o tempo todo, desde ”eu amo sorvete” até ”eu amo a Deus”. Mas confundimos amor com desejo, com ganância, com luxúria e com apego. Pensamos que amar algo ou alguém significa agarrarmos aquilo pensando nele como ”meu”. E por causa dessa mente que agarra, nós sofremos bastante. Sofremos por medo de perdermos o que desejamos e sofremos o luto de o perdermos. Pensem nisso. Quase sempre confundimos apego com amor. Mas apego não é amor. Apego é agarrar-se, aderir-se. E essa é a raiz de estarmos no estado de sofrimento.
Buddha afirmou que existe a verdade do sofrimento e da causa do sofrimento. A causa do sofrimento é agarrar. Agarramo-nos violentamente às coisas porque não sabemos como fazê-lo de forma suave. Mas tudo é impermanente. Tudo flui – não é estático ou sólido. Não podemos segurar nada. Se tentarmos segurar a corrente de um rio, terminamos sem nada – pois não podemos segurar a água com o punho fechado e se represarmos seu fluxo, acabamos com algo muito estagnado, fétido e deteriorado. A realidade é movimento. Se tentarmos segurar com força nós a matamos. Isso causa muita dor e muito temor em nossas vidas. Não é amor. Amor é um grande coração aberto. É um coração que pensa ”que você esteja bem e feliz” e não ”que você me torne bem e feliz”.
Para cultivar esse coração que deseja a felicidade dos outros, podemos começar com nossa família. Isso significa tentar fazê-los felizes e sermos receptivos a eles. Nada de agarrar-se ou aderir-se – apenas estar lá para eles. Demonstrar-lhes amor, afeição, pois eles são os primeiros a necessitarem do nosso amor e afeição. Mas nada de afeição possessiva.
Quando eu tinha 19 anos, decidi buscar um Lama e disse a minha mãe: ”vou para a Índia” e ela respondeu: ”é mesmo, quando você vai?” Ela não disse: ”o que você quer dizer com ir à Índia?”. ”Como você tem coragem de deixar sua pobre velha mãe?” Ela disse: ”é mesmo, quando você vai?” não porque ela não me amasse e sim porque ela me amava. Ela me amava e queria que eu realizasse meu potencial e fosse feliz. Ela não estava pensando “Oh, mas se você me deixar vou me sentir solitária. Vou me sentir miserável, como você pode me abandonar?” Por causa do seu desapego ela se alegrou com minha felicidade. Mesmo quando eu estava longe, apesar de ter certeza que ela sentia muitas saudades de mim, ela se alegrava com as coisas que eu fazia, com os lugares que eu conhecia e com as pessoas que eu encontrava. Ela veio para a Índia ficar um ano comigo. Mas retornou para Londres. Todo o tempo em que estive longe ela nunca me escreveu dizendo: “ok agora volte, estou ficando velha e é sua obrigação como filha voltar para cuidar de mim”. O máximo que ela escreveu foi: “bem, eu sei que você realmente pertence à índia, mas há 10 anos você está longe. Então se eu mandar uma passagem de volta você viria passar em mês?”
Isso é amor. E aquele coração de bondade não é algo impossível. Pode ser cultivado. A alegria em fazer os outros felizes, de pensar em como doar um pouco de felicidade, um pouco de satisfação àqueles que encontramos através de uma palavra gentil, um sorriso, um presente ou qualquer outra coisa. Não é pensar “oh, mas eles nunca me deram nada, porque eu deveria dar-lhes alguma coisa?” ou “eles nunca sorriem para mim, então vou sorrir para eles”. É uma mente pequena e insignificante. Pensem em uma sociedade onde as pessoas são no mínimo boas umas com as outras. Seria o paraíso não seria? Ainda assim não custa muito sermos agradáveis mesmo com quem não nos retribui. Se formos amáveis com todos, então, no geral, as pessoas serão amáveis conosco.
Pois a verdade é que colhemos da vida o que nela plantamos. Se irradiarmos sempre pensamentos e sentimentos negativos – raiva, ressentimento ou apenas preocupação conosco – então é o que teremos de volta. Se pensarmos que o mundo é horrível, e que todo mundo é ruim, então seremos completamente miseráveis. Bem, é a nossa liberdade – podemos fazê-lo, mas se distribuirmos bons e sinceros pensamentos; se nosso comportamento em relação às pessoas for de desejar que elas sejam felizes e, o tanto quanto pudermos, nós contribuirmos de alguma forma com uma palavra gentil ou um sorriso (e com nossa família podemos contribuir de grandes formas) – então eventualmente o que receberemos é o que doamos. No geral, as pessoas serão gentis conosco, no geral, pessoas gostarão de nós. Se nossos sentimentos forem genuínos, teremos também uma resposta genuína.
Nós projetamos nosso próprio mundo. Nossa mente é como um grande projetor e duas pessoas no mesmo lugar podem ter experiências completamente diferentes sobre o que está acontecendo. Uma vez que nos damos conta disso, compreendemos que temos a liberdade de mudar. Não somos computadores que são programados apenas de uma forma. Todos podemos mudar. Mas ninguém poderá fazê-lo por nós. Dependerá de nós. Temos que nos modificar. Temos que tomar essa decisão.
Temos essa vida. Essa vida será cheia de desafios. Não estamos neste mundo apenas para nos sentirmos felizes e confortáveis. Animais querem sentir-se confortáveis. O que querem eles? Eles querem abrigo, alimento e talvez queiram sexo (se a eles fosse concedida a oportunidade de não serem esterilizados quando ainda muito jovens para protestarem). Eles querem afeição. Eles querem simpatia e conforto. Nós também. Mas se é só isso o que desejamos da vida, não somos melhores que animais. Mas somos seres humanos e temos a chance de realmente desenvolver nossas qualidades internas – nossa inteligência e nossos impulsos espirituais – o que nos torna especificamente humanos. Pois, se passarmos nossas vidas apenas tentando estar confortáveis, apenas tentando levar uma boa vida evitando qualquer dor e apenas procurando o que é prazeiroso, não só ficaremos decepcionados, mas também não aprenderemos nada.
Alguém disse que essa vida é como um ginásio de esportes da alma. É verdade. Nesse mundo é onde treinamos, e onde a prendemos, aqui é onde desenvolvemos nossos músculos. Podemos nos sentar enroscados numa cadeira e nos tornarmos flácidos. Nós decidimos. Podemos também dizer: “olhe, aqui estou. Esta é minha situação, este é o tipo de pessoa que eu penso ser. Tive essa criação e a aceito. E agora?” Todas as coisas que são negativas, que causam dor a nós e aos outros, podem ser transformadas, ou usadas, podem ser reconhecidas. E aquelas qualidades que precisam de desenvolvimento podem ser desenvolvidas. A única razão para não o fazermos é por preguiça. Nós pensamos “ah não, os outros conseguem mas eu não”. Contudo, todos nós podemos.
Então, isso é conosco. Nós criamos esse mundo na medida em que o projetamos de nossa mente. Podemos torná-lo algo significativo. Podemos trazer uma genuína contribuição para o meio ambiente. Mesmo que seja dentro do nosso círculo, ao ajudarmos os outros a se sentirem melhor, podemos viver uma vida que tem propósito. Assim, no final de nossa existência, poderemos olhar para trás e dizer: “bem, pelo menos fiz o que pude”. Ou poderemos desperdiçá-la, atravessar a vida com resmungos, queixumes, reclamações e culpando os membros da família, a infância infeliz, nossos pais ou o governo e a sociedade.
Depende de nós se vamos para cima, se vamos para baixo ou se ficamos estacionados. Se queremos ser miseráveis, podemos ser completamente miseráveis, temos toda a permissão. Mas se não o quisermos será também por nossa conta. As coisas mudam. As coisas mudam a todo momento. Nós podemos mudar. E se nós nos modificarmos, tudo mais se modifica. Tudo se modifica.
Jetsunma Tenzin Palmo
Gatsal Teachings
Número 22, fevereiro de 2009
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